quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Parecer sobre achados fortuitos [baía de Angra]


I

Em 6 de Abril de 2001 o 2º Comandante Local de Angra do Heroísmo da Polícia Marítima enviou ao Director Regional da Cultura um auto de notícia levantado na véspera face a declarações de dois indivíduos que se apresentavam como mergulhadores amadores, indicando um a profissão de segurança priva...do, outro a de monitor de natação. O auto menciona que, no decurso de um mergulho desportivo com garrafa, os declarantes teriam encontrado em quatro diferentes posições cujas coordenadas e profundidades se indicam :



1. Um navio de madeira de dimensões imprecisas, de que apenas uma pequena parte é visível, com grande quantidade de loiças e peças de metal em seu redor.
2. Uma grande quantidade de potes de barro, alguns aparentemente vidrados e loiça com decoração variada.
3. Pelo menos dois canhões.
4. Um navio de madeira aparentemente de grandes dimensões, com vestígios de loiça partida e madeiras à volta.

O auto tem ainda anexos cinco documentos, cada um deles intitulado «Achado fortuito / Auto de Notícia / Detecção visual durante mergulho desportivo com garrafa». Estes documentos identificam outros tantos achados, que assim parece não se confundirem com os quatro primeiros por terem diferente localização (em coordenadas e/ou em profundidade) e são os seguintes:

5. Um navio de madeira de grandes dimensões, com estrutura visível e lastro ao centro.
6. Um barco de madeira aberto.
7. Um conjunto de 30 a 32 âncoras de várias dimensões e formatos numa área circular com cerca de 250 metros de diâmetro.
8. Várias bolas aparentemente de ferro e vestígios de lastro.
9. Um navio de madeira com grandes dimensões e partido em duas partes.
Perante estes dados, a DRC mandou verificar os pretensos achados para fins de inventariação. Esta verificação ocorreu logo em 1 de Abril de 2001 e foi completada com outras efectuadas em 8 e 9 de Junho seguinte. Do respectivo relatório consta ter-se averiguado que os restos do navio de madeira (1) haviam sido já inventariados em 2001-04-01; que os potes de barro dispersos a uma profundidade de 34-40 metros (2) não foram encontrados, designadamente nas coordenadas indicadas no respectivo auto de notícia; que os dois canhões (3) também não apareceram; que o navio de madeira de grandes dimensões (4) correspondia ao «Angra A» localizado e estudado desde 1996, além de se confundir também com o achado constante de outros dois autos de notícia (5 e 9); que o barco de madeira (6) era um conjunto de pedras de lastro e madeiras; que o conjunto de âncoras (7) era de há muito conhecido, ao ponto de haver sido já alvo de um projecto científico em 1995; e que as bolas de ferro (8) não apareceram, nomeadamente no local indicado.


II

O mergulho amador estava proibido nas baías de Angra e do Fanal desde 20 de Abril de 1995. A proibição fizera-se sob a forma de edital, nos termos do artigo 6º e seu § único do Regulamento para o exercício do mergulho amador na área de jurisdição marítima, aprovado pelo decreto 48 365, de 2 de Maio de 1968.

Estamos porém em presumir que esta proibição estivesse esquecida da Capitania do Porto de Angra, pois de outra maneira não se compreende a nova proibição do mergulho amador nas mesmas duas baías, estabelecida nos mesmos termos da anterior por edital de 4 de Abril de 2001 e claramente reactiva à situação criada pela comunicação dos pretensos achados.

Seja como for, aquela proibição anterior estava vigente, como vigente se achava o artigo 26º do citado Regulamento para o exercício de mergulho amador, o qual prescreve que os mergulhadores amadores (...) deverão (...) verificar (...) se existe algum impedimento. Tomarão ainda o cuidado de se informarem de quaisquer avisos, proibições ou interdições, temporárias ou permanentes (...).

Os pretensos achadores não fizeram nada disto. O que não quer dizer que se achassem na ignorância da legislação que estabelece recompensas para os achadores e manda levantar autos de notícia relativamente aos achados.

O caso é tanto mais peculiar quanto é certo que a razão de ser da proibição estabelecida desde Abril de 1995 estava justamente em impedir que, fora das regras já estabelecidas para a pesquisa de bens no fundo daqueles duas baías, há muito conhecidas como cemitérios de navios, se desenvolvessem actividades clandestinas de pesquisa e eventual recolha de bens com valor, arqueológico ou não. É que justamente nesse ano ia alta a discussão sobre pesquisas, com ou sem concessão, de restos de navios perdidos, mormente no mar dos Açores e muito especificamente nas águas da ilha Terceira.

O artigo 28º do Regulamento citado estabelece que aos achados provenientes da prática de mergulho amador são aplicáveis as disposições legais a que estão sujeitos os achados no mar ou nas praias.

Adiante se verá que a lei, correctamente interpretada, não confere no caso concreto direito a qualquer compensação para o achador. Mas ainda que conferisse, haveria de pôr-se sempre uma questão prévia : os achadores não podem considerar-se mergulhadores amadores, com direito ao seu estatuto próprio – incluindo os direitos correlativos – pela razão simples de se acharem a praticar mergulho em circunstâncias ilícitas.


III

O já citado DL 164/97 (de 27/6) sobre o património submerso, pode levantar, como é natural, alguns problemas de aplicação. O seu artigo 12º prevê que, fora da pesquisa sistemática e licenciada, possa acontecer o achamento ou localização por acaso de bens com valor cultural. Estes achados fortuitos dão direito a uma recompensa para o achador.

O problema, como se está a ver, está na qualificação do achado como fortuito, isto é, acidental ou imprevisto – o que forçosamente implica que não tenha sido procurado... Para ser correcta, esta qualificação implica assim um autêntico processo de intenções, porque o elemento decisivo para se qualificar o achado assenta justamente no animus do achador antes e no momento desse mesmo achado.
Ora todos os fundos marinhos à roda da Terceira, incluindo, claro, os do porto de Angra, são de há muito conhecidos como jazidas de múltiplos navios perdidos. E mesmo quem não seja estudioso destas coisas não pode ignorar que pelo menos desde 1970 se movimentaram interesses no sentido de localizar restos de navios ali afundados e eventuais tesouros que ainda deles restassem. É público e notório que variados interesses pressionaram o poder político, tanto regional (com efeitos no decreto legislativo regional 30/83-A, de 28 de Outubro e no decreto regulamentar regional 1/96-A, de 14 de Janeiro – hoje declarados inconstitucionais) como o nacional (com efeitos, designadamente, nos decretos-lei 289/93, de 21 de Agosto, 85/94, de 30 de Março e na portaria 568/95, de 16 de Junho – todos por sinal revogados pelo DL 164/97). Tudo com largos reflexos na comunicação social.

Com um enquadramento destes, uma conclusão desde logo se impõe. E ela é de que quem chegar a quaisquer restos arqueológicos submersos na área do porto de Angra terá imediatamente contra si a presunção de que nada ali encontrará por acaso.

Tanto basta, a nosso juízo, para se não reconhecer qualquer direito dos pretensos achadores a uma recompensa.

À Administração regional compete, por força da lei 19/2000, de 10 de Agosto (ressalvada na sua vigência pelo nº 4 do artigo 114º da recente lei 107/2001, de 8 de Setembro) a adopção das medidas para a defesa do património cultural subaquático, designadamente nos termos do DL 167/97.

O entendimento que deixámos exposto conjugado com este enquadramento legal justifica que se não dê andamento a qualquer processo de avaliação para os fins previstos nos artigos 18º a 20 do referido DL 167/97.


IV

Pode perguntar-se se a Polícia Marítima de Angra do Heroísmo deveria ter lavrado o(s) auto(s) de achado fortuito, de acordo com o referido no artigo 13º do DL 167/97.
Não vemos inconveniente em que o tenha feito, que mais não fosse senão por uma medida cautelar e informativa.

Só que isso não é suficiente para constituir os pretensos achadores no direito à recompensa por achado fortuito o qual, repete-se, não existiu.

O que achamos, no caso concreto, é que a Polícia Marítima deveria até ter feito mais. Efectivamente, achando-se proibida desde 1995 a prática de mergulho amador nos fundos do porto de Angra, os achadores incorreram na violação do artigo 6º do Regulamento acima já citado. Isto implicava o desencadeamento do processo previsto nos artigos 36º e 37º do mesmo Regulamento. Processo este que segue hoje os trâmites estabelecidos pelo DL 17/91, de 10 de Janeiro.


Angra do Heroísmo, 4 de Outubro de 2001
Autor: Álvaro Monjardino Duarte Rego Pinheiro

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