quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

"séculos de trabalho arqueológico a fazer no fundo da baía de Angra..."

"Era um naufrágio, os restos de uma cidade do mar que séculos atrás estava cheio de actividade e de drama humano. Talvez o navio tivesse navegado através dos estreitos de Baude e Malaca para trazer especiarias das ilhas distantes do Pacífico. Talvez estivesse carregado de ouro inca.


Comecei a angustiar-me sobre se havia ou não de tirar um pedaço ...de naufrágio, capturar parte deste mundo perdido. Em terra, não me tinha envolvido em discussões com o Fernando, nem com qualquer outra pessoa, sobre o facto de nos apoderarmos das coisas. Nunca me tinha ocorrido. Não tinha ideia sobre a ética do grupo em relação a isso ou se teriam instruções do Alves sobre o assunto. Mas fui tomado pelo desejo de ficar com um pedacinho daquele mundo desaparecido. Também compreendi, embora vagamente, que o impulso estava destinado a conseguir pouco. Não obstante decidi segui-lo.

A madeira estava em muito mau estado, apodrecida e cheia de buracos de vermes. Puxei pela extremidade de uma viga e esta cedeu facilmente. Pus o pedacinho, não maior do que uma moeda grande, dentro da minha luva para o proteger.

Perto das vigas expostas, estava outra pilha de louça partida. Agarrei num bocadinho e segurei-o na mão entre os anéis da corda amarela, não tendo outro lugar para o pôr.

Tom e Fernando estavam a inspeccionar as extremidades do navio, fazendo medidas e tirando fotografias. Decidi fazer a minha própria inspecção na área. De alguma forma, os meus anteriores receios de ficar sem ar desvaneceram-se.

Passei por uma região arenosa numa direcção que pensei ser mais afastada da praia. Não foi preciso muito tempo para deparar com outro barco naufragado. Partes do seu esqueleto de madeira ressaltavam do fundo do mar, estando melhor preservadas do que as do primeiro. Excitado, fui buscar o Tom e o Fernando. No novo local, Tom puxou da sua faca e tirou uma amostra de madeira.

Voltámos, passando mais uma vez por uma área cheia de pedras. De repente, não muito longe de um grupo de seixos gigantes, Fernando nadou até ao fundo e começou a examinar cuidadosamente um longo objecto. Tinha uma densa crosta e era aberto numa extremidade. Como Fernando fizera antes de mim, pus os meus dedos cuidadosamente lá dentro, sentindo a abertura circular. Não havia dúvidas. O objecto era um canhão.

Fernando estendeu a fita métrica plástica ao longo do canhão, mas as correntes estavam sempre a puxá-la. Depois de várias tentativas conseguimos, finalmente, segurando Tom numa extremidade de fita e eu na outra. Depois Fernando fotografou o canhão.

Durante o seu próprio mergulho até ao meio da baía, Alves e Paulo tinham encontrado uma pilha de cascalho em que foram capazes de discernir uma dúzia ou mais de canhões de bronze. Era óbvio que esse naufrágio, mais longe da praia e mais profundo que os nossos, não tinha atraído muita atenção humana. Em geral, os canhões de bronze conservam-se muito melhor na água do mar que os de ferro, e eram muito mais valiosos enquanto peças de artilharia e antiguidades.

Passámos repetidamente por vastas áreas arenosas entremeadas com pilhas de pedras de balastro. Finalmente, encontrámos os destroços espectrais de um grande navio moderno, muito deteriorado, com as vigas em aço a sair da areia. Por entre o seu esqueleto, nadava um cardume de cavalas, um peixe azulado. Fernando, obviamente feliz com o mergulho, estendeu os braços para as abraçar.

Subimos à superfície e nadámos lentamente de volta às escadas de cimento, tendo explorado o fundo da baía durante mais de uma hora. O céu tinha clareado. Nuvens espalhadas passavam baixas e suaves enquanto o sol se começava a pôr. Era uma beleza. Subimos os longos degraus e tirámos o pesado equipamento.

Não consegui encontrar o minúsculo pedacinho de madeira que partira, apesar de toda a minha ansiedade. O mesmo acontecera com a caco de cerâmica. Ambos haviam desaparecido, guardados pelo mar.

A pouco e pouco, ou outros mergulhadores regressaram à praia, extasiados com a aventura. A escorrer água, sorrindo e rindo, compararam notas e entusiasmaram-se com as riquezas do cemitério de naufrágios. Mais de uma pessoa observou que havia séculos de trabalho arqueológico a fazer no fundo da baía de Angra.”


William J. Broad, “O Universo lá em Baixo – Os Mistérios do Mar”

(autor galardoado com o Prémio Pulitzer)

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