quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

"Sinistro - Sábbado 5 do corrente, pelo meio dia, pouco mais ou menos, aproximou-se deste porto o vapor inglez Runher, de 343 tonelladas, capitão E. Courtenay, com 51 pessoas de tripulação, com carga de víveres, proveniente de Londres, com destino para as Bermudas, trazendo 4 dias de viagem.

Ao entrar no porto, seguindo a toda a força, passou entre os navios ancorados e tomando um bordo bastante à terra encalhou junto ao cáes da alfandega, a bem pouca distancia. O commandante, a cuja imprudencia só se deve tal sinistro, fez esforços para recuar o navio, mas foram baldados. O navio era a primeira viagem que fazia. O commandante precipitou-se, porque se tivesse esperado o pratico, teria fundeado sem perigo algum junto ao outro vapor que se achava no porto. São sempre africanadas que custam caro aos donos dos navios e que podem desacreditar o porto."

Assim noticiava o jornal Angrense, na sua edição de 7 de Novembro de 1864, o naufrágio de um barco a vapor no interior do porto de Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira - um facto que seria mais tarde confirmado pelo Boletim Oficial do Governo, no seu Mappa Geral dos Naufrágios Occoridos na Costa Portuguesa.

Era tudo o que havia a saber sobre o navio e era exactamente esse tudo - que era muito pouco - que era estranho. Navio algum naufraga assim, na sua viagem inaugural e parte pela história adentro sem deixar mais rasto alguma da sua trajectória no mundo. Algo de estranho se passara, certamente.

Verificados os anuários da Lloyds, constatei que a seguradora nem sequer tinha registos do navio - o caso deixava de ser estranho e passava ser surreal. Depois de procurar, debalde, mais informações sobre o navio fiquei com o Runher a pairar no meu subconsciente, na certeza absoluta de que algo de muito peculiar se tinha passado naquela africanada em mares açoreanos.

O mistério, porque era realmente de um mistério que se tratava, só se veio a resolver em 1998, no local mais improvável de todos: no interor do elevador de um hotel de Corpus Christi, no Texas.

Primeiro, a data. A data era relevante. 1864. Quatro anos antes tinham-se iniciado acontecimentos que iriam modificar profundamente a história de um país do Novo Mundo, com repercussões presentes e futuras à escala mundial. Com efeito, em 1860, vários estados do Sul dos Estados Unidos tinham proclamado a sua independência, criando-se efectivamente um novo país: os Estados Confederados da América. Para este território rebelde foi nomeado um presidente, Jefferson Davies, sem que houvesse da parte do governo federal do Norte e do presidente legítimo, James Buchanan, qualquer medida dissuasora de fundo.

Os sulistas iniciaram então um esforço frenético, procurando obter um reconhecimento diplomático internacional, um esforço reconhecido prontamente por uma Inglaterra que necessitava do algodão sulista para as suas manufacturas têxteis como de pão para a boca e mais cautelosamente vigiado por outros países menos comprometidos em termo de matéria prima.

Quando, em 1861, Abraham Lincoln se tornou o 16º presidente dos Estados Unidos, o país estava dividido em duas metades desiguais – dos seus 32 milhões de habitantes, 22 milhões estavam no norte e 10 milhões, entre os quais 3 milhões de escravos, residiam no sul. No seu discurso inaugural, de tomada de posso, Lincoln foi peremptório:

"in your hands, my dissatisfied fellow countrymen, and not in mine, is the momentous issue of civil war. The government will not assail you.... You have no oath registered in Heaven to destroy the government, while I shall have the most solemn one to preserve, protect and defend it.!

A mensagem não foi escutada pelos Secessores do sul. No dia 14 de Abril de 1861, tropas sulistas tomaram o Forte Sumter, dando inicio a uma guerra civil que opôs os estados Confederados do Sul aos estados Unionistas do Norte. Durante 4 anos, até 1865, os dois exércitos travariam inúmeras batalhas, com vitórias e derrotas para ambos os lados, num longo conflito que seria classificado mais tarde como a maior guerra civil da história.

No âmbito puramente militar, a Guerra da Secessão inaugurou o uso de armas terríveis, percursoras dos horrores que estariam para vir – navios couraçados, submarinos, canhões estriados, a guerra aérea e, entre outros mais engenhos infernais, as minas navais de detonação eléctrica, de que falaremos a propósito mais adiante.

Os Confederados, muito mais fracos em recursos, tinham como estratégia principal a de obter vitórias desmoralizantes no terreno inimigo e resistir no seu próprio até que o Norte desistisse de uma guerra crescentemente custosa e inútil.

O Norte, por sua vez, sabia da exiguidade dos recursos do Sul, mormente da sua dependência quase total da venda do algodão à Inglaterra. Para se opor a essa fonte de receitas, o Norte estrangulou o abastecimento de alimentos do Sul e as exportações dos seus produtos, impondo um bloqueio naval a todos os portos sulistas - enquanto o Norte vendia trigo para todo o mundo, o Sul não conseguia vender seu algodão para ninguém.

Como resposta, o Sul armou embarcações corsárias para afundar os navios mercantes nortistas – dos quais o mais célebre foi o Alabama, armado nas águas da ilha Terceira, numa coincidência interessante – e iniciou um plano ambicioso, em conjunto com os estaleiros navais ingleses, de construção de navios super rápidos que apenas tinham um único objectivo: furar o bloqueio do Norte.

E foi isso que eu aprendi, naquele elevador do Texas. Num congresso de arqueologia subaquática, calhei a dar de caras com um dos maiores especialistas em história naval confederada, Kevin Foster, o director do Programa do Património Náutico do National Park Service. Encerrados num elevador, fizemos a chamada small talk dos elevadores e espaços confinados afins: ele perguntou-me de onde vinha eu, eu disse-lhe Açores, ele retorquiu, curioso, dos Açores só sei que existem lá 2 navios sulistas afundados, eu digo, sei os nomes de quase todos os navios afundados lá, como se chamavam, e ele, um deles era o Run’her.

Bingo. Mistério resolvido - era Run’her (“tentem apanhar-me”) e não Runher como estava grafado no jornal! A partir daí, foi fácil.


Os furadores de bloqueio

No âmbito do programa Confederado de construção de navios especificamente destinados a furar o bloqueio, foi lançado à água, a 3 de Março de 1863, o The Southerner. Este navio, com cerca de 90 metros de comprimento e 300 cavalos de potência, apresentava pela primeira vez na história da construção naval mercante uma caldeira com superaquecimento de vapor e um casco reforçado com blindagem - com 18 nós de velocidade de ponta, viria a dar o mote para aquilo que seria a construção naval em 1864.

Nesse ano, saía dos estaleiros de Spence Pile, West Hartlepool, o vapor de pás Whisper, com 80 metros de comprimento e uma velocidade de 14 nós. Partindo de Falmouth a 16 de Novembro de 1864, o Whisper fazia parte de uma frota de quatro furadores de bloqueio que carregavam quase exclusivamente equipamento destinado à construção de minas navais de detonação eléctrica. Destes quatro, o Whisper foi o único que conseguiu furar o bloqueio, após ter escalado Angra a 26 de Novembro de 1864. Dois foram apresados e o último, o Run’Her, era o que tinha naufragado na baía de Angra do Heroísmo.

E porquê o segredo? Durante os últimos anos da guerra civil, os navios que furavam o bloqueio eram, geralmente, propriedade do governo Confederado. Essa propriedade era, no entanto, camuflada de modo a evitar que os navios fossem classificados como vasos sob um pavilhão nacional o que poderia levar à sua adesão às regras estritas de neutralidade exigidas para navios de guerra e de transporte.

Sofrendo de uma falta crónica de crédito estrangeiro, o governo Confederado viu-se obrigado a estabelecer contratos de aquisição de navios junto de seis grandes construtores navais britânicos, fornecendo estes últimos navios equipados com maquinaria de alta tecnologia em troca de carregamentos de algodão. Só quando o número de fretes executados fosse suficiente para amortizar a dívida de construção receberia o governo Confederado o controlo completo do navio em causa.

Para melhor proteger os seus interesses navais, a Marinha Confederada destacava os seus melhores capitães para bordo dos furadores do bloqueio. Pelas informações recolhidas no Arquivo Distrital de Angra do Heroísmo, descobri que uns dias após o naufrágio, tinham saído de Angra para Lisboa umas dezenas de passageiros com nomes anglo-saxónicos. Não havia registo de chegada, só de saída, logo só poderiam ser os passageiros e tripulantes do navio naufragado. Um deles era o cidadão americano Hunter Davidson. Uma inquirição mais tarde e prontamente se descobriu que era a este “cidadão” que estava incumbida a tarefa de coadjuvar o capitão civil do Run’Her, Edwin Courtenay, na manobra do navio.


O comandante sulista Hunter Davidson
Hunter Davidson, nascido no estado da Virgínia em 1827, foi nomeado para o cargo de guarda-marinha a 29 de Dezembro de 1841, após ter concluído os seus estudos na United States Naval Academy de Annapolis, Maryland, naquele que foi o segundo curso naval a ser ministrado nesta instituição.

A sua carreira naval prosseguiu com a sua nomeação a tenente, no ano de 1855 e terminou cinco anos mais tarde quando Hunter apresentou a sua resignação, pouco antes de se juntar à população rebelde do seu estado natal. É ainda durante o decorrer do primeiro ano do conflito armado que Davidson é nomeado para o posto de 1º tenente da Marinha Confederada, em Junho de 1861.


Durante a guerra veio a ocupar vários cargos, quer embarcado, quer em terra, distinguindo-se pelo papel que desempenhou aquando da primeira escaramuça havida entre dois navios couraçados, o CSS Virgínia e o USS Monitor.

Após o fim da sua comissão de serviço a bordo do CSS Virgínia, Davidson dedicou-se de corpo e alma à idealização de minas submarinas, tendo sido assistente de Matthew Fontaine Maury, brilhante cientista naval.

Quando este último foi destacado para serviço de investigação na Europa, Davidson tomou a peito as tarefas de melhoramento, construção e posicionamento de minas navais no interior do leito do rio James, no âmbito do plano de defesa da capital sulista, Richmond, tendo os seus esforços sido amplamente recompensados com o abate de vários navios nortistas.

Davidson foi também o responsável pela formação do Naval Submarine Battery Service, serviço este que respondeu pelo afundamento de algumas dezenas de embarcações da União. Em 1864 Davidson foi promovido a comandante - após um semi-submarino por si comandado ter, num ataque particularmente bem sucedido, danificado seriamente a fragata a vapor USS Minnesota, naquela que foi uma das primeiras operações bélicas de um submarino em teatro de guerra.

Em meados de 1864, Davidson tinha concebido um sistema eléctrico altamente sofisticado de detonação de minas navais o que o tornou no maior perito, a nível mundial, em armas deste género. Devido à dificuldade em obter nos estados Confederados as matérias primas e os equipamentos necessários para esta nova arma, Davidson foi destacado para a Inglaterra onde veio a trabalhar com os maiores especialistas ingleses nas áreas da telegrafia subaquática e dos explosivos.

Entre os vários materiais usados - e embarcados no Run’Her - contavam-se vários tipos de acumuladores e baterias eléctricas, cabo eléctrico submarino isolado, equipamentos de ebonite destinados a tornar as minas estanques, interruptores de telégrafo, sistemas de teste, detonadores e estruturas de minas por construir. Estas minas eram extremamente eficientes, extremamente mortíferas e desesperadamente precisas num teatro de operações que se caracterizava pelo domínio naval do Norte.


O Run’Her

Construído pelos estaleiros de John & William Dudgeon, em Isle of Dogs, Londres, o Run’Her possuía cerca de 70 metros de comprimento, 8 metros de boca e 3.5 metros de calado, deslocando cerca de 343 toneladas. Partindo de Londres, com 50 pessoas de tripulação, o vapor demorou quatro dias a chegar à Terceira onde veio naufragar no interior do porto, ao que parece por culpa do capitão Edwin Courtenay, que cauteloso demais e com receio de ser surpreendido fora da protecção dos fortes portugueses, resolveu chegar-se demasiado a terra, encalhando.

No próprio dia em que era dado à estampa o Boletim Oficial que noticiava o naufrágio, era arrematado, por 800$000 reis, o casco do vapor com todo o seu recheio, à excepção da máquina e de uma caixa de platina. Infelizmente para o comprador, enquanto que a 19 de Dezembro de 1864 se procedia à arrematação pública dos salvados do Run’Her - que subiram em geral a um preço fabuloso - o navio era completamente destruído por um vendaval, na noite do mesmo dia. Parte da sua carga permaneceu ainda em Angra, tal como se pode comprovar pela aquisição por parte dum navio inglês proveniente do México de vários caixotes de carne provindos da carga salvado Run’Her, a 9 de Abril de 1865, cinco meses depois do naufrágio.

Após o seu naufrágio nos Açores, Davidson regressou a Inglaterra - tendo partido de Angra para Lisboa a 18 de Novembro de 1864 no vapor português Maria Pia, que transportava também trinta e cinco marinheiros ingleses - onde veio a assumir o comando de um outro navio procedente dos estaleiros Dudgeon, o City of Richmond. Este navio - transportando também equipamento destinado à construção de minas navais - foi desviado da sua viagem inaugural para ir prestar assistência ao couraçado CSS Stonewall. Este atraso foi o suficiente para o que chegasse o fim da guerra, a 9 de Abril de 1865, antes que qualquer um dos dois navios pudesse a atingir qualquer porto Confederado.

Depois da guerra, Davidson nunca chegou a regressar aos Estados Unidos. Serviu como oficial de marinha em diversas forças navais da América do Sul e chegou mesmo a combater na Guerra da Tripla Aliança contra o Paraguai. Davidson serviu também como consultor tecnológico no fabrico de minas navais e torpedeiros até à sua morte, em 1913, no Paraguai.

Infelizmente, deste naufrágio poucos documentos se encontram, para já, acessíveis. As informações relativas ao processo de arrematação ou referentes ao possível transbordo da carga militar para outras embarcações da Confederação não se encontram no Arquivo Distrital de Angra do Heroísmo. Fica assim para mais tarde uma investigação completa que só se poderá realizar no Arquivo Geral de Marinha, em Lisboa, ou em arquivos da Marinha americana.

Mesmo os seus vestígios são parcos. Uma caldeira, centenas de chapas do casco, uma placa de chumbo aqui e ali: pouco resta hoje em dia das armas secretas dos Confederados a não ser a sua memória e evocação.

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